Você tem acesso a sistemas de saúde de qualidade. Você frequentou instituições de ensino privadas e escolheu a carreira dos seus sonhos. Você nunca passou fome – e, obviamente, trabalhar para complementar a renda familiar jamais esteve em suas demandas urgentes. Você, branco ou branca, nunca teve sua bolsa revistada em uma loja em função da cor de sua pele. Você não sofre violência por ser homem. Você não é agredido ou agredida física e psicologicamente por ser hetero.
No currículo: diplomas, intercâmbio(s), proficiência em idiomas. Na rotina: um happy hour, uma viagem, uma estante que transborda livros, uma coleção de discos, uma galeria de fotografias que ensaiam a felicidade.
Se ainda não reconheceu, lá vai: você é privilegiado, você é privilegiada.
Meu mundo não é “só” o meu mundo
Uma pesquisa do Datafolha aponta que, por exemplo, se os rendimentos totais de sua família chegam a R$ 2 mil mensais, vocês se enquadram na fatia mais rica da população – que soma 34%. Isso mesmo, a mais rica. Mas esse privilégio não se limita ao dinheiro.
Os elementos afetivos que constroem a vida em sociedade também interferem no reconhecimento do sujeito como cidadão. Ou seja: está em vantagem quem tem uma figura paterna e ativa sob o teto (já que boa parte das famílias é constituída por mães solos e seus filhos e filhas), quem não vive em meio a um ambiente bélico, quem não sofre discriminações, quem não duvida se a refeição de amanhã vai estar à mesa.
Reconhecer a minha (a sua, a nossa) existência dentro desses padrões não é uma ofensa. Pelo contrário: pode ajudar, ainda, a minimizar os efeitos da desigualdade que gera gargalos entre as tantas comunidades do Brasil. Entender que se ocupa uma posição de vantagem é primordial para aceitar que o meu mundo não é “só” o meu mundo – e que as problemáticas de violência, de racismo, de machismo e de pobreza não são questões de escolha, mas, em maior escala, de determinações sociais de quem ainda tem uma história para (re)construir.
Quem acredita nem sempre alcança
Em um mundo de extremas desigualdades, a meritocracia ainda aparece como uma explicação para o sucesso, para a sobrevivência. Mas o discurso cantarolado por Renato Russo de que “quem acredita sempre alcança” é (e digo isso na maior educação) uma incrível bobagem. A certeza de que basta confiarmos e trabalharmos para que um padrão de vida seja atingido é uma completa ilusão.
Por quê? Vamos lá. A linha de partida de uma pessoa que se encaixa nestes atributos de privilégio citados ali em cima jamais (jamais!) será a mesma daquele homem que, ainda criança, trabalhava em turno integral para assegurar o sustento dos irmãos mais novos; ou daquela menina que, criada só pela mãe (pois o pai não estava pronto para a família), sai de casa aos 14 e abandona a escola; ou, ainda, daquele menino gay que é violentado por um familiar desde a infância; e quem sabe, também, daquela mulher negra que é reduzida, questionada, objetificada assim que nasce.
Deste modo, nem sempre a vontade e o trabalho são suficientes para se atingir o ponto de chegada dos sonhos. Existe uma série de poréns que, talvez, quem está do lado de cá nunca irá entender.
Nós devemos recuar
Você ter privilégios não significa, necessariamente, que a sua vida foi fácil – mas que, sem dúvida, a nossa corrida se dá com menos obstáculos. Na semana passada, assisti o relato de um homem (inserido dentro de todos os padrões de masculinidade impostos pela sociedade) repetia o discurso de que “só existe limite para quem quer ser limitado”. Ora, vejamos: isso quer dizer que depende exclusivamente da vontade da pessoa ter ou não tropeços em sua vida? Que estar em vantagem é questão de escolha? Que o privilégio, portanto, não é determinante?
Vamos, então, ignorar o fato de que muitos de nós podemos trabalhar do conforto de nosso lar enquanto centenas de milhares se submetem a um transporte público lotado, todos os dias, expondo a sua vida em risco. Podemos deixar de lado, ainda, a vantagem que temos em acessar Netflix e Spotify em momentos de lazer; e a alegria em saber que, tão logo a pandemia se encerrar, vamos marcar aquela viagem “para relaxar”.
Ah! E quem sabe, vejam só, nem tenha tanta diferença entre o trabalhador desempregado, que vive às margens; e você, que aproveita a pausa da quarentena para cuidar de suas plantas e se autoconhecer. Ouvi estes dias de um rapaz, em uma entrevista, que “quem passa fome não tem tempo para essas coisas de se autoconhecer”.
É por isso (e por tanto mais) que nós, que estamos em vantagem, devemos recuar.
Homens: escutem. Mulheres: abram espaço de protagonismo, em especial, para negras, lésbicas, bissexuais, trans. Pessoas brancas: se percebam racistas e deixem de reproduzir lógicas de preconceito. Mas o mais importante para todos e todas nós, privilegiados e privilegiadas, é descer do pedestal em que fomos socialmente colocados, silenciar e ouvir. Não é caridade. É obrigação. É reparação de uma dívida histórica.

leticiaf.rossa@gmail.com