A cidade de Gramado detém um contingente de 1.326 profissionais da área da saúde. Além destes, são 710 moradores acima de 80 anos que vivem no município. A pergunta que muitos habitantes têm feito é: como, de míseras 530 doses da vacina contra a Covid-19 recebidas pela secretaria de saúde do município, uma delas foi parar no braço de um jovem, advogado, com menos de 30 anos, que não atua na linha de frente no combate à pior pandemia do último século?
Após um ano entre confinamentos, fechamentos, empresas passando por enormes dificuldades, e diversas famílias enlutadas, eis que surge uma luz no fim do túnel. O Brasil, através de uma parceria entre o instituto chinês Sinovac e o laboratório brasileiro Butantã, conseguiu providenciar algumas doses da vacina Coronavac, uma das tantas aprovadas para uso emergencial ao redor do mundo.
Com doses em número claramente insuficiente, era de se esperar que as secretarias municipais, detentoras do poder de escolha dos vacinados, fossem priorizar aqueles que passam seus dias justamente no combate ao vírus. A totalidade de doses recebidas pela prefeitura de Gramado, por exemplo, não seria suficiente para imunizar nem 1/3 dos profissionais da linha de frente, os médicos e enfermeiros que atendem em postos de saúde e hospitais.
E então, eis que as secretarias municipais de saúde no Brasil começam a receber os imunizantes e os casos de mau uso e de fura-fila começam a pipocar por todos os cantos. Em Manaus, por exemplo, que sofre talvez a sua pior crise sanitária da história, mais de 60.000 doses desapareceram, após casos de filhos de empresários, de políticos, parentes, servidores, entre outros, terem recebido indevidamente a vacina ante grupos de risco.
Em Gramado, um jovem cidadão, filho do secretário de Inovação e Desenvolvimento Econômico da Prefeitura Municipal, foi um dos escolhidos pela Secretaria de Saúde a receber o imunizante. Advogado, ele trabalha na área administrativa do Santa Ana Residencial Geriátrico desde agosto de 2020, segundo informação do diretor de comunicação da prefeitura, Fabio Schmatz.
E então começaram os questionamentos. Meus dois avós estão na casa dos 90 anos e moram em Gramado, uma cidade que teve praticamente 10% dos seus habitantes infectados. Nas redes sociais, minha esposa também fez alguns questionamentos, que de pronto, foram chamados de “maldosos” pelo atual diretor de comunicação do município.
Em uma das respostas nos comentários de seu post, inclusive, ele disse que quem questionava deveria responder criminalmente. Mas, com um bem tão raro no mercado atualmente, que é o imunizante, questionar o poder público sobre seus critérios se tornou uma ofensa? Com míseras 530 doses, qual seria o critério para colocar um jovem advogado, independente de quem seja, a frente de uma boa parte dos médicos, enfermeiros e idosos?
Estas perguntas foram feitas em rede social ao mesmo diretor de comunicação, que, recusando-se a responder, solicitou que as mesmas fossem enviadas por e-mail à prefeitura de Gramado, sendo prontamente atendido.
Segundo Fabio, o jovem vacinado responde pelo Santa Ana Residencial Geriátrico desde que seu pai assumiu a secretaria de Inovação e Desenvolvimento Econômico, em janeiro de 2021. Não pode trabalhar de casa, devendo estar em contato com os idosos todos os dias, diz ele em uma das suas respostas. Além disso, os critérios seguidos para a vacinação foram os que estão no guia instrutivo para operacionalização da campanha de imunização enviado às secretarias municipais.
E então, esse é o momento de responder a questão proposta no título deste artigo. Eu não moro no Brasil. Trabalho em uma empresa de mais de 200 funcionários, onde o CEO faz home office, onde os gerentes fazem home office, todas as pessoas que não são funcionários diretamente ligados à produção e que podem trabalhar de casa, assim o fazem. Existe, de fato, a necessidade de quem responde legalmente por uma casa de repouso estar no local, todos os dias?
Segundo o guia instrutivo enviado pelo diretor de Comunicação, quem deveria ser contemplado pela vacina nesta primeira remessa são aqueles da linha de frente que mantem os serviços de saúde, idosos acima de sessenta anos, trabalhadores da saúde que estão mais expostos ao contato com o vírus, equipes de vacinação, profissionais que atuam nas UTIs, serviços de urgência, emergência, entre outros.
Dos profissionais de serviço privado que não atendem o SUS, caberá ao gestor municipal avaliar a estratégia de priorização dos profissionais de maior risco* (frase retirada do guia).
A pergunta que fica é: De mais de 2000 pessoas dentre profissionais da saúde e idosos acima de 80 anos, como o gestor municipal avaliou em sua estratégia que um advogado, jovem, gerente de uma casa de repouso estava entre o grupo de maior risco? Muitos enfermeiros e enfermeiras não foram vacinados nesta primeira fase, pois são somente 530 doses. Muitos idosos, como meus avós, não foram vacinados. Talvez do ponto de vista legal, possa ser cabível. E moralmente?
Uma última pergunta, está direcionada ao poder público. Desde quando questionar critérios adotados por gestores, especialmente em um momento crítico como esse, deveria causar essa comoção dos que estão investidos de cargo público? Como um diretor municipal diz em suas redes sociais que um cidadão deveria responder criminalmente por questionar?
Felizmente, apesar dos devaneios autoritários de alguns, o Brasil ainda é uma democracia, e ainda podemos cobrar aqueles que são pagos com nossos impostos.
Cabe ao poder público fazer aquilo para o qual lá está. Tomar as melhores decisões, respeitar os cidadãos, e responder quando for questionado.
Diego Hörlle Pfuetzenreiter
Programador da área de automação industrial
Ottawa, ON
diego.horlle84@gmail.com
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