Escute: Mesmo que seja eu/ Erasmo Carlos
Se o coração deu uma cambaleada, fuja. Fuja para as colinas. Desligue a playlist. Não olhe para o céu. Nem busque estrelas ou flores coloridas. Os sonhos que começam frutificar naquele solo do coração que você jurou, nunca mais mexer, não olhe para eles. Não sonhe. Não tenha esperança no amanhã. Nem busque os beijos que te tirem segundos de consciência. Busque o seguro, o aperto de mão amigo que te leve para o amanhã atravessando a rua sabendo exatamente para onde vai.
A amizade às vezes se disfarça de amor. Quase sempre ela vem com a comodidade de ter alguém para as fotos, para a convenção social. Para a aceitação e validação do sucesso. Os beijos e abraços que se encontra conforto muitas vezes ali não estão. Os formatos de relacionamento mudaram. Cabe a cada um saber seu limite. Mas no manual anti amor, isso é essencial. A superficialidade.
No amor, assim como na vida, a lógica te leva até onde a maioria vai. O óbvio está ao alcance dos olhos. A pessoa certa, muitas vezes, é de alguns dias. É a certa para aquele momento. E então conhecemos os amores líquidos do “ Bauman”, aquele filósofo polones que nos lembra que descartável também é amor.
As palavras do amor natural, descrito por Darwin e pela teoria da evolução, onde os genes escolhem os parceiros mais aptos à procriação não se encaixam nas histórias e contos conhecidos pela atual geração de quase 40 anos, onde príncipes salvam princesas. Pelo viés da cultura teológica, da igreja católica tão disseminada na cultura ocidental, o casamento é um sacramento. Protegeu e protege patrimônios ao longo de décadas e impediu que esposas tivessem filhos fora do casamento. Pensando no amor como negócio, os formatos de organizar essa bagunça pelas instituições ao longo do século, foi criar mecanismos para “segurar” os parceiros em uma instituição que protegesse as promessas.
Mas se tudo isso é fato. Se o amor é na verdade assim como no reino animal, uma escolha da natureza humana para corrigir a genética da próxima geração. Nosso corpo reconhece o parceiro mais apto a copularmos e assim garantirmos que se perpetue características da nossa espécie. E se a igreja institucionalizou o sentimento, como forma de dar sentido e proteção aos pares. Antes da igreja, mulheres e terras eram saqueadas. Onde foi que mesmo podendo escolher qualquer parceiro, mesmo não tendo religião muitas vezes, escolhemos alguém? Podendo partir, optamos em ficar?
Escolhemos podendo ser livres. Escolhemos mesmo pensando em não ter filhos. Escolhemos o que sentimos. Escolhemos com a terapia em dia ou com todas as faculdades mentais nos apontando para outra direção. Decidimos não pegar o voo ou pegar o voo. Escolhemos mudar de emprego ou cidade. E escolhemos não pelo que o outro nos oferece como lógico, mas sim pela emoção que nos causa. O amor romântico que muitos acreditam conhecer, ocorre poucas vezes na vida. Ele vem com a força da natureza biológica de Darwin e com a esperança que todos os antepassados estavam certos e que sim, o amor pode e deve ser para sempre. E vou te contar um segredo, será.
Costumo pensar no amor como barcos e pontes. Alguns amores nos auxiliam a atravessar períodos da nossa história. Nos levam a outra margem. Sua importância é de algumas décadas. Nos fazem crescer, às vezes sofrer, não pelo que são, mas pelos desejos que criamos e projetamos.
Muitas vezes aquela relação é perfeita e crível pelo período que existiu. Nos fez ser quem somos. Foi a mão na travessia, e quando chegamos ao outro lado, saímos do barco. Mas esse barco é meu! Como deixar ele partir? O que eu farei sem o barco? E então você percebe que talvez já esteja em seu destino, podendo seguir ali sozinho.
Ou se depara com uma imensa ponte que nunca sairá daquele local e que representa, que através dela você sempre voltará a visitar o seu passado, nunca esquecendo de onde veio, mas que te leva para frente, pro desconhecido, e ela permite a travessia, a volta, o retorno, o recomeço e o avanço. As pessoas “pontes” permitem ver os barcos atracados, partindo e chegando. Mas as pontes permanecem.
Alguns de nós com muita sorte partimos de pontes. Alguns nunca nem se atreveram a embarcar no barco. Muitos ainda estão olhando a travessia pelos seus faróis. Vêem tudo de um ângulo mais alto, e de vários pontos de vista. A solidão não é um estado de permanência, mas uma escolha. Tem os que estão sozinhos e nunca conseguiram encaixar seu projeto de vida em outro. E são felizes. Tem os que buscam incansavelmente, pulam do barco, atravessam a nado e chegam em pontes que não são suas. Se desviam de sua rota olhando para barcos alheios, vidas e trajetos que não são seus.
Algumas travessias são mais longas, de uma vida. Outras têm tempestades, perdas. Noutras, o barco se perde, o barco se desmonta. E nos faz aprender a remar na correnteza até encontrar outro barco, que ainda está longe de ser nosso porto. Barcos que nos salvam.
O amor é a resposta. Não a cômoda. Não a oportunista que vê vantagens e facilidades. A que te acomoda. O amor de verdade não é posse, é travessia. Tem pessoas que fingem carinho e afeto, buscando seguir o protocolo do que acreditam que deveriam ser. No manual anti amor, busque o raso. O seguro. Qualquer travessia que te tire de “terra firma” será amor, mesmo que de dias. E mesmo que o seu pra sempre seja diferente do pra sempre dos contos de fadas, é amor mesmo que mude. Mesmo que dure uma vida ou a semana inteira. No manual anti amor, mude a rota do que te faz crescer. Cancelar a agenda. Dos carinhos que tocam a alma. Que desnude suas dores.
E vou te contar um segredo: às vezes a travessia será sozinho. O amor próprio é a travessia mais demorada. Muitas vezes os amigos estão lá na ponte, gritando e aplaudindo, esperando você chegar.
Amor e esperança andam juntinhos. Acho até que o nome desses barcos são esperança. E da ponte, fé.