Eu preciso reconhecer. Publicamente. Homens não são violentos (por mais que maridos e ex-companheiros sejam os responsáveis por 90% de feminicídios do Brasil). Homens não odeiam as mulheres (embora os crimes de violência contra nós, cometidos por eles, tenham triplicado em 2021). Homens não são estupradores (ainda que no ano passado 57 mil casos foram notificados no país).
A responsabilidade não é só masculina, meninas. Nós também usamos saias curtas demais e peitos à mostra – convenhamos, quem pode culpá-los? Eu sei, rapazes, é difícil para vocês. Uma burca não impediu uma menina muçulmana de ser estuprada coletivamente em 2019, por exemplo, mas a intenção do grupo de homens era a diversão, sem dúvida. Eu entendo. Até quanto à paciente violentada neste mês de julho, no Rio de Janeiro, antes de iniciar sua cesárea – o que pôde fazer o anestesista, a não ser penetrar a boca da futura mãe com seu instrumento de trabalho, o pênis? É assim que funciona de uns tempos para cá (me admira muitas de vocês, mulheres, não saberem).
Ok, há dados que mostram o contrário e não enganam. Ao que aponta o Fórum de Segurança Pública, mais de 100 mil meninas e mulheres foram vítimas de violência sexual entre março de 2020 e dezembro de 2021 – somando, obviamente, apenas casos notificados. Isto é, no ano passado, o Brasil registrou um estupro de mulher a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas.
Aqui mesmo, na região do faz-de-conta de Gramado e Canela, nesse mundo encantado em que a magia é realidade, o sonho do “era uma vez” também é mera fantasia para dezenas de meninas e mulheres já violentadas, em especial, dentro de suas casas (sabe aquele tio, o padrasto ou então o próprio pai cidadão de bem…?).
Na contramão destes índices (que, vejam bem, ao fim do dia são só números em uma planilha acumulada no fundo de uma gaveta, junto a tantas outras pesquisas sociais) estão os homens que “valorizam o feminino” e que reconhecem que “a barra é pesada de fato” para as mulheres. Há os que prometem “militar” junto aos seus e educar seus filhos meninos a “nunca, jamais, nem em um milhão de anos” violentar uma mulher. Conheço aqueles, ainda, que reiteram intermináveis pedidos de desculpas por terem “feito tão pouco”. E gentis que são, também me satirizam com um humor tão seu ao brincar (ingenuamente, queridos) que sou a “tradicional queimadora de sutiã kkk”.
A construção destes discursos costurados em uma sociedade liberal e progressista como a da serra gaúcha (risos) se assemelha aos parques de diversões que margeiam nossas avenidas: são frases de efeito e imagens de impacto estampadas, em vez de um outdoor, em contas do Instagram e Facebook – para não restar dúvidas do quão antiestupro e a favor das mulheres vocês, homens, são. “Eu entendo vocês, que sofrem tanto”, eles dizem à espera de aplausos mascarados de curtidas e comentários. “Ei, vejam, nasci com pênis e não pretendo estuprar você por enquanto”, é o que eu consigo ler.
Vocês, rapazes, não nos respeitam por apostarem em uma equidade de gêneros. A suposta cordialidade na dicotomia homem versus mulher aparece disfarçada de conveniência: um estupro virou notícia nacional, então deixa eu publicar um amontoado de palavras para reforçar que não, eu não faria isso; muitas meninas expõem seus corpos livres em redes sociais, então todas as manhãs eu, homem, também pretendo exibir minha rotina de treino com frases de autoajuda que ajudam, ao fim, ninguém. Direitos iguais, afinal.
Porém, ainda assim, eu entendo. Por milênios, a voz, o poder, a decisão e o lugar à mesa foram de vocês, moleques filhos de papais defensores da pátria, de deus e da família. Às nossas mães, avós, bisas e as centenas de gerações que antecederam, o espaço reservado era o do silêncio, o da obediência, o do servir com um cordial riso nos lábios. Nós trocamos a fralda, vocês trabalham em seus escritórios. Nós varremos o chão, vocês trazem de volta toda a sujeira. Nós apanhamos, vocês agridem sem culpa. Nós engravidamos, vocês jogam futebol. Nós parimos, vocês publicam a foto da criança no Facebook (#papaidoano). Nós somos estupradas, mas vocês, ah, vocês nunca estupram.
Queridos, não me entendam mal. O palco sempre será de vocês, que de pernas cruzadas e copo de uísque na mão, confiam que ainda iremos nos curvar para agradecer tamanha benfeitoria que é considerar a nós, mulheres, como seres humanos. Muito obrigada por nos compreender. Muito obrigada por nos desejar. Muito obrigada por não me estuprar.
É nosso dever, garotas, ocupar o vácuo de coadjuvantes e louvar o esforço de nossos amigos, companheiros, vizinhos e tantos outros moços que reconhecem a duros sacrifícios o privilégio masculino (mas sem lançar mão destes benefícios porque, ora, há limites). Cabe a nós compreender que eles lamentam as violências diárias, sejam sutis ou fatais, a que somos submetidas – e também avaliarmos onde está a nossa culpa. É preciso que eu e você, amiga, sejamos pacientes por mais alguns milênios de anos e ensinemos nossas filhas, sobrinhas e primas que o protagonismo do mundo é deles.
Do pai, do tio, do amigo, do marido, do padrasto, do avô, do namorado, do ex, do chefe, do ditador de regras nas redes sociais.
Porque nunca é um homem, eu sei. Mas acontece que sempre é um homem.
Entendamos, mulheres. Eles precisam de palco.
*Este texto contém ironia.