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Letícia Rossa: Bonita demais para pensar

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“Você é uma menina, sorria mais”. “Fecha as pernas para sentar”. “Olha só, parece uma princesa”. “Pois tu é bonita demais para ser inteligente”. “Ué, esse rostinho não pode se esconder atrás da câmera”. “Sei que tu veio a trabalho, mas sempre quis tomar um drink com uma jornalista”. “Você conseguiu criar isso sem ajuda? Sério?”. “Vem cá, tu não entendeu, deixa eu explicar”.

Em menos de cinco minutos, estas são algumas das frases soltas que lembrei de já ter ouvido. Fosse eu uma exceção, vá lá. Mas cada uma destas palavras carrega o peso de centenas de milhares de meninas que, desde o engatinhar, são condicionadas a ocupar um único espaço: o do silêncio.

E estas exigências já estão decretadas antes mesmo do nosso nascer. Vai ser menina? “Poxa, cuidado com a gravidez na adolescência”. “Ensina ela a falar direito”. “É bom não usar roupa curta, vai saber o que vão dizer”. “Tomara que arranje um marido bom”. “Se fosse um guri seria mais fácil, né?”.

Ou seja: a menina, aos primeiros sinais de vida, já aprende a atender expectativas de passividade, de quietude, de submissão. E a criança dá lugar, portanto, a uma mulher com a voz anulada, com o volume de ideias apagado, com o riso que disfarça o desconforto.

É assim que a história, via de regra, é construída.

Mas o enredo nem sempre é desenhado conforme estas tradições jurássicas e emboloradas. Por vezes, a vida retorna aos trilhos do trem quando esta mesma menina (a passiva, a quieta, a submissa) responde a dominação com resistência: “Você me interrompeu”. “Essa ideia é minha”. “Isso não é apropriado”. Não, simplesmente não”. “Veja bem, amigo, se eu fosse homem, você me trataria do mesmo modo?”.

Credibilidade para quem?

Não é errado garantir que homens detêm privilégios, diante de mulheres, unicamente por terem nascido homens – em especial aqueles que se enquadram sob um padrão hétero, cisgênero e branco.

Neste jogo de poderes, em que um impõe e o outro obedece, ela é a histérica, ele é o criativo. Ela é emotiva, ele é empático. Ela é frágil, ele é humano. Ela é preguiçosa, ele é sobrecarregado. Ela é autoritária, ele é decidido. Ela é louca, ele é extrovertido.

O gargalo que coloca estas distinções na vitrine está espelhado em toda a sociedade: no lar, na rua, na escola, na arte, na política. Mas um dos espaços que mais escancara as diferentes expectativas sobre mulheres e homens é o profissional: afinal, quem são elas para realizarem (seus próprios) sonhos?

Nós fomos autorizadas a trabalhar. Desde que em cadeiras mais baixas, coadjuvantes que somos. Desde que em cargos assistenciais (e não de liderança), incapazes que somos. Desde que em profissões historicamente “femininas”, delicadas que somos. Desde que permaneçamos em silêncio, loucas que somos.

Nossos talentos e competências precisam ir ao embate uma incontável série de vezes para que, contando com a sorte, tenhamos nossas habilidades minimamente reconhecidas e respeitadas.

A quem fala que todos somos iguais: mentira. Os homens iniciam do zero. As mulheres começam do -150.

Sem causar incômodo

Na contramão destes modelos que embrulham o estômago, há uma expectativa curiosa de que sejamos assertivas, politizadas, inteligentes. Mas quando nos colocamos de pé, cabeça erguida e voz firme – bom, é aí que ultrapassamos a linha que nos foi enfiada garganta abaixo. Porque, então, nós esquecemos o nosso lugar de quietude. Devemos ter opinião, mas sem causar incômodo. Devemos ter inteligência, mas sem roubar os holofotes apontados para os homens à mesa.

E aqui não falo especificamente deste ou daquele homem, mas de um modelo que nos é historicamente apresentado. A lógica que atravessa estas relações de poder tem a ver com a história da humanidade, em que o homem dominante está em uma condição social hierárquica superior à da mulher (que é, portanto, dominada).

A hegemonia da nossa coletividade é branca, masculina, heterossexual e cristã. Deste modo, são nomeados e nomeadas como diferentes aqueles e aquelas que não compartilham desses atributos. A ruptura acontece quando uma mulher rouba a cena. Ou, melhor: quando uma mulher traz para si o protagonismo que tanto já conseguiram apagar.

Onde estão as lideranças?

A construção social do que é ser mulher aparece como resultado, portanto, de relações de poder, conforme a estudiosa Guacira Lopes Louro nos inspira a pensar. Enquanto que, socialmente, se espera que homens atuem segundo uma lógica dura, fria, forte e decisiva, também há uma naturalização em idealizar mulheres a partir de uma conduta gentil, doce, frágil e dependente.

Deste modo, ao ocupar um espaço de protagonismo em um ambiente historicamente vinculado a homens, mulheres inauguram um novo molde de convivência. Na política, por exemplo, onde estão as lideranças femininas?

Mulheres correspondem a 52,6% do eleitorado brasileiro, segundo o Tribunal Superior Eleitoral. Mas há apenas 15% de deputadas federais e de senadoras; e somente um estado é governado por uma mulher. Existe, ainda, uma média nacional de 14% de vereadoras e de 12% de prefeitas brasileiras.

Como consequência deste panorama, uma avaliação elaborada pela Procuradoria Especial da Mulher do Senado Federal aponta que 65% da amostragem entrevistada acredita que a eleição de uma mulher presidenta influencia a população a votar em mais mulheres – desde vereadoras até novas presidentas.

O que estes índices representam para você? Mera coincidência ou falta de estímulo para mulheres líderes?

Nós viemos para gritar

Ora, veja bem. Talvez seja equívoco pensar que não há direitos garantidos. Mulheres podem falar, desde que com afeto. Mulheres podem trabalhar, desde que sem protagonismo. Mulheres podem sonhar, desde que não realizem.

Parece bom para vocês? Para mim, não. Nós somos o resultado de gerações construídas à base de “poréns”, de “desde que”, de “mas, querida…”. São machismos mascarados de proteção, são modelos inatingíveis disfarçados de gentileza.

Nós podemos ser princesas. Nós podemos casar. Nós podemos ser mães. Mas também podemos ser cientistas, médicas, motoristas, pesquisadoras, policiais, engenheiras, construtoras, prefeitas. Nós podemos ser o próprio “marido bom” que nossas famílias, um dia, desejaram que encontrássemos.

Nós viemos para gritar: chega.

E é por isso que, quando me perguntam: “Senhora ou senhorita?”.

Eu, de prontidão, respondo: “Pode me chamar de mestra. E futura doutora”.

Jornalista, mestra em Comunicação e doutoranda em Comunicação
leticiaf.rossa@gmail.com

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