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Letícia Rossa: Eu continuo sem pai

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Domingo é um dia bonito. Tem um quê de nostalgia, uma dose de sossego. Um gole de preguiça, um barulho de silêncio. Tem o da Páscoa, em abril; o das Mães, em maio. Tem aqueles sem folia, sem brinde – talvez os que mais abracem a gente.

E tem aquele. O segundo domingo de agosto, também celebrado por tantos como o Dia dos Pais. Esse, sim, reacende todos os estereótipos possíveis: cheiro de churrasco, gosto de cerveja, jeito de família entrelaçada às bordas da mesa.

Mas enquanto, por um lado, há gratidão, afeto e saudade; na outra margem estão 5,5 milhões de brasileiras e brasileiros sem registro paterno que riscam este domingo do seu calendário. Ano após ano, a segunda semana de agosto ativa uma cadeia de angústias, dúvidas e rejeições. Ano após ano, há crianças e adultos abandonados por seus pais que só esperam, em silêncio, a próxima segunda-feira chegar.

O vazio não é apenas do lugar físico, da pessoa em carne e osso. Falta mais. Falta a mão dada no primeiro dia de aula, falta o frio na barriga para contar sobre o primeiro namoradinho, falta a vergonha em pedir dinheiro para aquela calça nova. Falta a pessoa para quem deveríamos endereçar, na infância, os bilhetes e cartões de Dia dos Pais. Falta olhar para a plateia, na apresentação da escola, e não cruzar o teu olhar com o dele – porque, bom, ele não existe.

Falta. E é a falta que nunca, ninguém, vai inteirar.

As lacunas abertas pelo abandono não emergem à superfície só nestes dias de agosto, nas vésperas do Natal ou nas tardes de Grêmio. É uma luta não linear, dura e fria, contra os próprios boicotes, medos, inseguranças. Contra a incapacidade que esta recusa paterna despertou em cada criança antes mesmo do nascer.

No Dia dos Pais, esta falta dói. E em todos os outros, a ausência grita.

Aquele traço em branco na certidão de nascimento, portanto, não escancara apenas a inexistência de um registro, de um sobrenome. Ela talha uma ferida que não cicatriza e parece abrir sempre que, volta e meia, reaparece a pergunta: “Tá, mas e teu pai?”.

Sorte em meio ao caos

Minha história foge à regra. Aqui, importa falar não só dos pesares de meu abandono – mas também expor na vitrine o privilégio do acolhimento de uma família que transferiu seus holofotes para a minha felicidade.

E se sempre me sobram palavras para detalhar quaisquer sensações e vivências, me faltam modos de traduzir tamanha gratidão por carregar o sobrenome de uma mãe vítima desta construção patriarcal, machista e cruel; e de um nono que dedicou as três últimas décadas de sua história para a concretização de meus sonhos.

Se aqui a perspectiva é encontrar a sorte em meio ao caos, o abandono paterno talvez tenha sido, para mim, o caminho mais oportunamente feliz. 

Ele não está pronto

Uma em cada quatro pessoas. É isso mesmo: uma em cada quatro pessoas não conhece ou não tem o nome paterno no registro de nascimento, conforme estimativa do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.

O motor que empurra este índice para cima está nos engendramentos de uma sociedade sexista que reforça hierarquizações de poder entre homens e mulheres (por consequência, entre pais e mães) – com eles, obviamente, no topo; e elas escondidas na condição do silêncio. Ou seja: é naturalizado o descompromisso do homem em não assumir os filhos. Ora, ele jamais cogitaria engravidar uma moça sem estar razoavelmente preparado.

Ora, ele tem uma trajetória incrível de vida pela frente. Ora, ele não está pronto. E é assim que, geração depois de geração, perdoamos e compreendemos a covardia mascarada de vitimismo de centenas de milhares de homens no mundo inteiro.

Um Brasil de mães solo

Em uma contagem de 10 anos, entre 2005 e 2015, o número de famílias brasileiras lideradas por mães solo cresceu de 10,5 milhões para 11,6 milhões (conforme assinala o IBGE).

Então vamos lá, pensemos juntas e juntos: são estas mulheres guerreiras, por se segmentarem em tantas a fim de subsidiar, sozinhas, os pilares de um lar? Deixo aqui um tempo para reflexão. A resposta, caros, é: não. Estas não são mulheres guerreiras. São seres humanos esgotados, cansados, sobrecarregados.

São mães que acionaram sua rede de apoio para conferir o básico à sua criança (ou às suas crianças). São meninas que perderam a própria infância. São mulheres que apagaram suas identidades quando o parceiro decidiu não mais estar ali.

Para não esquecer

Entre mortos e feridos, sobrevivemos. Sem o reconhecimento paterno e diante de uma construção social que massacra, buscamos caminhos de uma vida justa, honesta e igual em meio a esta epidemia silenciosa que sorrateiramente teima em se repetir.

Eu sei, esse é um texto triste. E o escrevo porque: se há motivos para sempre agradecer – na contramão, também há razões para não silenciar sobre estes abandonos que, infelizmente, não têm data para acabar.

O segundo domingo de agosto passou. Mas eu (e milhares de tantos outros) continuo aqui, sem pai.

Jornalista, mestra em Comunicação e doutoranda em Comunicação
leticiaf.rossa@gmail.com

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