A vida inteira, vejo a maioria das pessoas fazendo cara de nojo e repugnando o urubu. Que come restos, animais mortos. Tenho é pena de urubu, que precisa de restos pra viver. Triste sina tem esse ser, que na sua natureza foi forjado a não caçar, mas esperar o que sobrar para então a faxina executar.
É pelo cheiro da carniça que lá vai ele afoite, saciar a sua fome. De olfato bem apurado, o urubu fareja onde está a presa. Em círculos no céu, vai baixando, peregrino. De todas as sentenças, talvez a mais fácil de julgar: caçador preguiçoso, comedor de sobras e carniças. De todas as sentenças da natureza, talvez a mais difícil de ser compreendida, ao invés de fardo, sina. Fácil olhar o que está somente a um palmo de nossos dedos de julgamento.
Até o urubu não escapa. Se não fosse ele, quanto mau cheiro… o que faria a natureza com os restos de seus mortos. Como deve ser bom ser beija-flor. Ou quem sabe andorinha. Passarinho. Mas ser urubu, isso é coisa pra fortes. E tem como escolher, o que se nasceu para ser.
Mas não se nasce o que se quer, se nasce o que se é. E alguns nascem urubus, não que isso seja má sorte, é vida. Nascem com missão divina, de não suportar outro sabor, se não o da dor. O urubu não sabe comer se não o que nasceu para fazer. Pobre sina peregrina, essa do urubu, de não conhecer o sabor de um mundo de cor.
Assim também somos nós. No nosso dia-a-dia, muitos são os urubus que realizam a faxina de nossas vidas. O mundo sempre deixa restos. Restos de dias, de planos, restos de sonhos, restos de relações, e lá correm urubus se alimentar do que está ali a secretar. E é desses restos que muitos “urubus” vão se alimentando, crescendo, vivendo.
Felizes ao redor da pobre vítima já a se dizimar, e o urubu a avistar, lá do alto, sem os olhos soltar. Sente o cheiro de podridão a lhe chamar. E ele não sabe sentir cheiro de flor só de dor. Chega devagar, depois averigua a certeza da morte, e assim aos poucos arranca pedaços daquele que agora é prato seu.
Muitos dos urubus do nosso cotidiano dão uma mordidinha aqui, outras ali e assim vão nos tirando às vezes, a última gota de vontade de levantar e correr.
Para não sofrer, se sucumbe a falta de esperança do cerco, se fecha os olhos e vira então mais uma vítima da fome desse afoite. Pobre urubu, triste é a sua sina, de viver dos restos, de viver do que não corre, de viver do que não luta, de viver do que lhes deixam, de viver da desventura de outro ser.
Alegria de urubu é mesa cheia. Quantos restos pra sua ceia. De restos que ele vive, outros ali, mal conseguem perto chegar. A escolha e sina dos urubus deixa cheiro por onde passam, infeta sua pelagem e ele longe vive. Viver de restos tem um preço.
Pobre urubu se soubesse que infesta tudo por onde passa. Fácil é vida de passarinho cantador, fácil é vida de bem-te-vi que nasce bunitinho. Para quem nasce feio e com gosto pra dor, viver do que sobra dos outros é ate conformador. Ai que dó urubu, pra quem nasceu urubu jamais será beija flor.