Aspirando com força deve se chegar aos odores íntimos. Uma cidade deserta tem cheiro. Uma casa esvaziada replica os ares de estações estagnadas. Esses lugares não habitados, seja porque as pessoas mudaram-se para outros lugares, ou venderam a casa ou ainda a casa é um investimento nos mercados virtuais compõem a extensa faixa litorânea do Rio Grande do Sul. Nela, a população é estimada pela FEE/RS em 400.000 habitantes fixos e a ocupação sazonal, dita flutuante, nos meses de verão pode subir entre 150 a 500%.
As praias e as cidades praianas são um deserto entre abril e novembro. Nesse hiato, as casas desabitadas ficam à mercê do clima hostil, das empresas de segurança e zeladoria e os quintais cultivam a si próprios ao sabor das sementes germinadas por espontânea disseminação. Essas plantinhas desgarradas vão se infiltrando pelos gramados cuidados generosamente no verão, insistindo em ocupar seu lugar de originárias; potentes para enfrentar habitação tão inclemente, mesmo que estudos da UFRGS demostrem a perda de 16 % dessa flora protetora.
As areias, não tendo mais o necessário espaço para se acumularem em cômoros, vão invadindo as casas nas proximidades da orla, cobrindo as pistas, desconsiderando as menções de contenção ao seu ímpeto natural.
Assim, nas praias da costa do estado, as casas fechadas em abandono consentido cheiram aos vapores insistentes da maresia, guardando a umidade trazida pelos ventos predominantes. Em uma única cidade balneária da costa norte – Xangrilá – no mês de dezembro, se observa quarteirões inteiros sem um único morador efetivo e a passagem gradativa desse estado de vacuidade com a aproximação do verão: as obras pipocam por todo lado, uma explosão de pessoas apressadas povoam as ruas, circulando e abrindo casas.
Pilotam máquinas de cortar grama e lavar pisos e telhados; desfilam bicicletas e carros com escadas e andaimes. Abordados, contam um pouco de suas fainas – nas casas é preciso lavar paredes, forros e janelas, móveis, colchões e almofadas. Panos de toda sorte, louças e utensílios consomem água e sol. Piscinas são tratadas. Os jardins perdem os insistentes inços, restolhos de mata atlântica.
Tal contingente se desloca da mesma cidade, de sua parte, diga-se, B, pessoas habitando densamente casas precárias. São gentes do “fim da praia”, do lado de lá da estrada do Mar, para lá de xangrilá. De acordo com os dados revisados pela Fundação João Pinheiro, ano base 2019, o déficit habitacional em todo o Brasil está em 5,8 milhões de moradias, afora suas precariedades.
Xangrilá é o nome de um lugar ideal, onde todos os bens individuais podem ser preservados, situando-se na literatura de James Hilton, desde 1933. Aqui, nesse pedaço de orla, para além dos quarteirões visivelmente vazios estão ainda os condomínios, postados como grandes caixas resguardadas do olhar passante. Misteriosos sonhos tornados realidade – oh Xangrilá!

Por Neusa Kern Hickel
PSI. Docente e pesquisadora em Psicopedagogia e Psicologia Social/Institucional. Coordena grupos de estudos e didático-terapêuticos em Psicopedagogia e em Filosofia contemporânea articulados à movimentos culturais. Experimentadora nas artes cerâmicas.
E-mail: neusahickel@yahoo.com.br.
*O Acontece Gramado publica as crônicas da turma da Oficina Santa Sede – Crônicas de Botequim, de 2022.